La cartuja.Vida contemplativa

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A ALEGRIA DE SER CARTUXO

 

 

INTRODUÇÃO

 

Há alguns anos o filme “O Grande Silêncio” causou grande impacto no público. Revelou um pouco sobre a vida dos cartuxos, mas só um pouco, porque a mudez do filme deixou os espectadores com muitas perguntas no ar. Quem são esses monges vestidos com grosseiros hábitos brancos? Que sentido tem essa vida retirada e silenciosa, tão diferente da vida dos sacerdotes e religiosos dedicados à vida pastoral, ao ensino, às missões, inseridos no mundo?

Os cartuxos defendem com firmeza o seu silêncio e retiro do mundo para poder viver seu carisma próprio e especial, por isso fogem da publicidade e raramente concedem entrevistas aos meios de comunicação. Não é de se adimirar que sejam tão pouco conhecidos.

Apesar de tudo, a vida solitária dos cartuxos sempre atraiu homens famintos do Infinito, desejosos de viver ocultos aos olhos do mundo, consagrando a sua existência totalmente a Deus no silêncio e na solidão de um ermo. Santos como Inácio de Loyola, João da Cruz e outros, sentiram o desejo de ingresar em uma cartuxa. E a Cartuja continua despertando interesse em não poucas pessoas de fé que se sentem atraídos por uma vida de fé singela, centrada no essencial.


 

Recolhemos aqui as perguntas que há alguns anos o Pe. Rosendo Roig, jesuíta, planejou para os cartuxos de Miraflores (Burgos, Espanha). Também aproveitamos para adicionar outras perguntas que os aspirantes costumam nos fazer em suas cartas e em seus retiros vocacionais. Esperamos que estes simples diálogos sirvam de orientação aos jovens desejosos de saber mais sobre o carisma e a vida diária dos cartuxos.

 

 

 

1. A VOCAÇÃO

 

- Quando um jovem aspira ingressar na Cartuxa...

- Normalmente nos escreve.

- A quem se dirige?

- Normalmente ao Pe. Prior.

- E quem lhe responde?

- O Pe. Mestre de noviços lhe manda uma carta incluindo um opúsculo informativo que dá uma ideia geral sobre as observâncias e exigências da vocação cartusiana. Hoje a maior parte dos aspirantes se dirige a nós por e-mail.

- E depois?

- Se responde e persiste em seu propósito, depois de recebermos informações favoráveis da parte de algum sacerdote que o conheça, o aspirante é convidado a passar uns dias de experiência na Cartuxa.

- Como passará esses dias?

- Para que a experiência seja mais proveitosa, ele vive em uma cela do claustro e segue os mesmos horários da Comunidade.

- Essa experiência esclarece alguma coisa?

- Depois de vários dias o aspirante terá uma ideia bastante aproximativa da vida que deseja abraçar.

- Quem se ocupa dele durante esses dias?

- O Pe. Mestre de noviços o visita com frequência, e com ele o aspirante fala amistosamente sobre a vocação e tudo o que está relacionado a esta.

- Qual é precisamente a finalidade desse diálogo?

- Aprofundar a espiritualidade cartusiana para ajudar o aspirante a descernir a sua vocação.

- Que motivações não seriam válidas para ser monge cartuxo?

- As desilusões da vida, o desejo de uma vida tranquila, sem problemas, em geral qualquer motivo egoístico. O único motivo válido é a busca dos valores que não passam, a busca mais ou menos claramente percebida (ou ao menos pressentida) de Deus. Procuramos analisar a vocação com o máximo de discrição e paciência.

- Com que idade se pode entrar na Cartuxa?

- Tende-se a desaconselhar cada vez mais o ingreso antes dos 21 anos.

- Dos 21 até que idade?

- Sem a autorização especial do Capítulo Geral ou do Reverendo Padre, que é o Superior Geral da Ordem, não se pode receber ninguém que já tenha 45 anos.

- E a autorização é concedida?

- Se a idade não supera muito os 45 anos pode ser concedida, mas só depois de ter feito uma experiência especial de três ou quatro meses antes de ser admitido como aspirante.

- Por que essa experiência?

- Porque nessa idade a adaptação às observâncias da Cartuxa é mais difícil e é preciso ver claramente se o candidato é capaz de adaptar-se antes de ser admitido como aspirante.

- E quanto à saúde, o que exige a Cartuxa?

- Antes da admisão, nossos Estatutos aconselham “consultar médicos prudentes que conheçam bem o nosso gênero de vida”. Pequenos desequilíbrios psíquicos que em outro lugar passariam quase despercebidos encontram na solidão da Cartuxa uma caixa de resonância que, aqui, impediriam de viver uma vida normal. Hoje os exames médicos são obrigatórios antes do Noviciado e da Profissão.

- Quanto ao caráter, o que exige?

- A vocação à solidão da Cartuxa exige uma vontade determinada e um juízo equilibrado.

- Então os caráteres tranquilos levam vantagem sobre os temperamentos nervosos?

- Nem sempre. Os temperamentos nervosos também podem se adaptar bem à Cartuxa.

- Sintetizando, qual é a qualidade essencial que se requer para ingressar na Cartuxa?

- Como a vida do cartuxo é uma vida de oração, dificilmente se admite a quem não sinta atração pelo recolhimento e pela oração. Na vida contemplativa nenhuma qualidade, por excelente que seja, pode suplir o espírito de piedade.

- Qual é especificamente a missão do Pe. Mestre de noviços?

- Dirigir a formação dos noviços, ajudá-los em suas dificuldades e nas “tentações que costumam insiditar os discípulos de Cristo no deserto”.

- Na Cartuxa se segue algum método específico de oração?

- Normalmente o noviço cartuxo começa sua aprendizagem nos caminhos da oração através da “lectio divina”. Este método de oração tradicional na vida monástica, sintetizado por Guigo II, o Cartuxo, consiste em ler pausadamente uma passagem da Sagrada Escritura e “ruminá-lo” lentamente. Depois, em silêncio, pode-se servir de sentimentos de agradecimento, de louvor, de contrição, que tal texto fez surgir dentro de nós para transformá-lo numa oração ao Senhor. Quando esse texto já não nos diz nada de especial, ou quando sobrevêm as distrações, volta-se a ler uma outra passagem, deixando-a descer ao coração. Este método de oração é muito simples e reduz notavelmente as distrações. Todo o ambiente da Cartuxa faz com que o monge se deixe possuir pela oração.

- Vocês dão muita importância à formação na vida de oração?

- Não poderia ser diferente. É importante que a oração do noviço tenda a simplificar-se, transformando-se num olhar singelo e amoroso ao Senhor, ainda que se trate apenas dos primeiros graus dessa oração de “simples olhar” ou de “quietude”, é conveniente que o noviço chegue a saborear a oração contemplativa. O mestre de noviços deve educá-lo com muita prudência à contemplação, consciente de que esta é a meta da oração.

- Não é exigir demais de um simples noviço?

- Normalmente se um noviço recebe a graça da experiência contemplativa de Deus, por mais simples e curta que seja, já estará preparado para superar os momentos de desânimo ou aridez e as crises que não costumam faltar, principalmente no tempo de noviciado. Viver habitualmente na presença de Deus, em relação continua e orante com a Sua Palavra no Ofício Divino, a liturgia das Horas, e nos momentos dedicados à “lectio divina”, vão arrancando o “homem velho” que dorme no fundo de cada um. O jovem monge vai se livrando da tirania dos sentidos e das paixões, do forte reclame do mundo sensível, do qual sinceramente se despediu ao entrar na Cartuxa, mas que continua alí, agarrado em seu interior. Vai superando assim a dispersão dos sentidos, a superficialidade, a inconstância, e toda a sua vida vai sendo penetrada quase imperceptivelmente da proximidade de Deus. Então, no recolhimento e no silêncio interior que invadem seu espírito, lhe são quase conaturais os sentimentos de adoração, de gratidão e de alegria espiritual. Se faltasse esse pilar da oração contemplativa, a vocação estaria sempre exposta ao desânimo, aos vaivéns dos sentimentos mutáveis, ao cansaço, à aridez e falta de gosto pelas coisas espirituais: muitas vezes são essas as causas que estão na raiz da maioria dos casos de abandono da vida monástica.

 

 

2. AS ETAPAS DO CAMINHO: MONGES DO CLAUSTRO

 

  1. O Postulantado

 

- Suponhamos que um aspirante a monge cartuxo tenha dado sinais de verdadeira vocação, no parecer dos Superiores da Cartuxa. O que se faz?

- Recebe-se o jovem como postulante.

- O que é Postulantado?

- É o período de prova que prepara para o Noviciado.

- Quanto tempo dura?

- De seis meses a um ano.

- Que tipo de vida leva o postulante?

- Uma vida muito parecida com a dos monges.

- Exatamente igual?

- São-lhe concedidas certas dispensas com o objetivo de que sua adaptação à nova vida seja gradual.

- Como se veste?

- Como secular, mas nos atos comunitários usa um manto preto.

- No que o postulante ocupa o tempo?

- Nos momentos não consagrados à oração, se dedica a formar-se no espírito da Cartuxa, aprende as cerimônias litúrgicas e estuda latim.

- Latim?

- É, latim.

- Demora muito para aprender o latim?

- Normalmente, depois de alguns meses de esforço, o postulante consegue adquirir modestos conhecimentos que lhe permitem entender os livros litúrgicos.

 

 

 

  1. O Noviciado


 

- Suponhamos que, concluídos os meses de postulantado, a conduta do candidato tenha sido adequada...

- Se a Comunidade lhe dá voto favorável, é admitido para o Noviciado.

- Quanto dura o Noviciado?

- Dois anos.

- O que faz o noviço durante o primeiro ano?

- Ele se forma na vita espiritual, aplicando-se ao estudo da liturgia e das observâncias cartusianas.

- E no segundo ano?

- Começa os estudos que o preparam para o Sacerdócio: dois anos e meio de Filosofia e três anos e meio de Teologia.

- E onde cursa esses estudos?

- Devido à vocação eremítica da Cartuxa, esses estudos têm lugar na solidão da cela.

- Mas como?

- Duas vezes por semana os estudantes vão à cela de um cartuxo conhecedor das matérias estudadas. Alí prestam contas de seus estudos e pedem as explicações necessárias. O cartuxo professor resolve as dificuldades que eles possam ter encontrado. Também é comum recorrer a professores de fora para assegurar melhor a formação teológica dos alunos.

- Como os noviços se vestem?

- Portam um hábito igual ao dos monges que já fizeram profissão, mas a cógula é curta e sem as faixas laterais.

- O que são as faixas laterais?

- São duas tiras de tecido que unem a parte da frente e a parte de trás da cógula. Os noviços continuam a usar o manto preto nos atos comunitários.

 

  1. A Profissão temporal


 

- Passados os dois anos, a Comunidade deu seu voto favorável. O que acontece com o noviço?

- Ele chega à Profissão temporal.

- Por que “temporal”?

- Porque ele emite os votos de estabilidade, obediência e conversão de costumes por três anos somente.

- Quais são os efeitos da Profissão temporal?

- Por ela, o “jovem professo” é definitivamente inscrito nos registros da Cartuxa onde emitiu os votos. Os anos de antiguidade na Ordem passam a contar a partir dessa primeira Profissão.

- E o Noviciado acabou?

- O jovem professo continua a ser membro do Noviciado como um noviço. O Pe. Mestre de noviços dirige a sua formação espiritual. Mas, no curso desses três anos, continua seus estudos eclesiásticos e aprofunda mais a formação espiritual iniciada no Noviciado.

- E passados os três anos?

- O jovem professo renova os votos por mais dois anos. A diferença é que nesses dois anos viverá com os professos de votos solenes, experimentando assim plenamente a vida que pensa em abraçar para o resto da vida.

- Continua estudando?

- No último ano habitualmente interrompe os estudos para dedicar-se mais plenamente à oração e à solidão da cela.


 

  1. A Profissão solene


 

- Já se passaram sete anos e enfim chegou a tão desejada hora da consagração definitiva.

- Dia importante para um cartuxo?

- É o maior acontecimento na vida de um cartuxo juntamente com a Ordenação ao Sacerdócio.

- A que ele se compromete?

- A viver para sempre e exclusivamente para o louvor de Deus. A Profissão solene é fruto de uma longa corrente de graças às quais o candidato correspondeu generosamente com a sua fidelidade diária.

- O que acontece depois da Profissão solene?

- Sob certos aspectos esta é mais um começo. O monge cartuxo em um ato sublime se consagrou a Deus. Agora tem de viver essa consagração dia a dia. O Sacerdócio conferido ao terminar os estudos coroa a Profissão.

- Que sentimentos preenchem a alma do cartuxo no dia de sua Profissão solene?

- Acho que os mesmos que, com acento lírico, expressou nosso Pai São Bruno na carta aos Irmãos de Chartreuse:

“Alegrai-vos, pois, meus caríssimos irmãos, por vossa feliz sorte e pela abundância de graças que Deus derramou sobre vós. Alegrai-vos por terdes escapado dos muitos perigos e naufrágios do tempestuoso mar do mundo. Alegrai-vos por terdes alcançado o refúgio tranquilo e seguro do porto mais escondido. Muitos gostariam de alcançá-lo, muitos até se esforçam para chegar até ele, sem o conseguir. E muitos outros, depois de tê-lo alcançado, dele são excluídos, porque a nenhum deles se lhes havia concedido do alto.

Portanto, meus irmãos, tende por certo que quem quer que tenha desfrutado de tão grande bem, e por um motivo ou outro o perde, lastimar-se-á por toda a vida”.


 


 

3. OS IRMÃOS CARTUXOS

 

- Sempre houve Irmãos na Cartuxa?

- Quando São Bruno se retirou ao deserto de Chartreuse, dois de seus companheiros eram leigos: Andrés e Guérin. Foram eles os primeiros Irmãos da Ordem. Sim, sempre houve Irmãos na Cartuxa. Com pequenas variações, o número de Irmãos na Ordem Cartusiana permaneceu durante séculos como na atualidade: sete ou oito Irmãos para cada dez Padres.

Os Monges do Claustro e os Irmãos são duas formas distintas de conjugar uma mesma vocação. Uns e outros compartilham sob formas complementares a responsabilidade da missão que incumbe às comunidades cartusianas: fazer com que exista no seio da Igreja uma família de solitários.

- Explique.

- Os monges do claustro vivem em suas celas a maior parte do dia.

- E os Irmãos?

- Mesmo participando da mesma vocação solitária que os Padres, eles a realizam de uma forma distinta.

- Como?

- Os Irmãos empregam certo tempo ao trabalho manual fora de suas celas assumindo as tarefas materiais do mosteiro.

- Fale-me mais sobre os Irmãos.

- Os Irmãos cartuxos, desde o começo até hoje, têm impressionado por sua estabilidade e seu elevado nível espiritual. Têm na Cartuxa um lugar próprio perfeitamente definido.

- E a que se deve isso?

- À vigilância dos Capítulos Gerais, à proximidade do Prior e do Procurador – que é o monge encarregado dos assundos materiais do mosteiro –, mas sobretudo ao clima espiritual de silêncio e solidão do qual os Padres e os Irmãos participam igualmente, ainda que segundo modalidades distintas.

- Qual é a formação de um Irmão cartuxo?

- É um caminho parecido ao dos monges do claustro. A duração do Postulantado varia e depende em boa parte da formação espiritual do candidato: pode durar de seis meses a um ano. Se a conduta do postulante deixa entrever uma vocação autêntica, após a votação da Comunidade ele é admitido ao Noviciado de Converso. Sua duração é de dois anos.

- Quem é o Pe. Mestre dos Irmãos?

- Tradicionalmente seria o Pe. Procurador, mas ultimamente é comum que seja o mesmo dos monges do claustro. O Pe. Mestre os dirige na formação e os ajuda a superar as provas e dificuldades que encontram no caminho.

- Quando termina satisfatoriamente o Noviciado, o que faz?

- O Irmão faz sua primeira Profissão por três anos. A partir desse momento, ele fica constituído como membro da Ordem. No final desses três anos, o converso temporal renova seu compromisso por mais dois anos. Durante todo esse tempo continua sob a direção do Padre Mestre.

- Então, para chegar a ser Irmão cartuxo são necessários sete anos de formação.

- Isso. E terminados os sete anos de formação chega o momento tão desejado de consagrar-se definitivamente a Deus através dos votos solenes. A cerimônia da Profissão acontece assim: durante a Missa conventual ele lê a fórmula da Profissão. Depois a deposita sobre o altar como símbolo de sua entrega a Deus.

- Os Irmãos recebem uma formação especial?

- A formação é sólida, adaptada ao seu estado. A Ordem dispôs para eles o que hoje chamamos “formação permanente”. Quer dizer, durante os primeiros 7 anos de suas vidas como cartuxos, orientados pelo Pe. Mestre, dedicam um tempo todos os dias ao estudo da Bíblia, de Teologia, Liturgia, Espiritualidade... Esta formação se adapta a cada Irmão. Ao longo de suas vidas podem continuar estudando.

- O que os Irmãos lêem?

- Eles têm à sua disposição a Biblioteca da Casa. As seções de Espiritualidade e Vidas de santos são as que mais frequentam.

- Quantas horas por dia trabalha um Irmão?

- Normalmente cinco, distribuídas entre a manhã e a tarde, mas durante o período de formação são reduzidas para que possam dedicar mais tempo à própria formação.

- Em que consiste o trabalho na Cartuxa?

- Antes de tudo é bom sublinhar que o trabalho dos Irmãos é um trabalho monástico. Eles não são empregados cuja principal razão de ser é a de fazer funcionar o mosteiro. Quando dizemos que o seu trabalho é um trabalho monástico queremos dizer que se trata de um ato religioso que os ajuda a progredir na prática das virtudes e que os aproxima de Deus.

- Como conseguem em pleno trabalho conservar o espírito de oração e de solidão?

- Os Estatutos da Ordem aconselham a recorrer, durante o trabalho, a breves impulsos em direção a Deus (chamados “orações jaculatórias”). Pode-se também interromper o trabalho para um breve momento de oração.

- Os cartuxos trabalham em grupo?

- Procura-se, na medida do possível, que cada um trabalhe individualmente na obediência que lhe foi confiada.

- É importante o silêncio?

- Sim, é muito importante o silêncio durante o trabalho. Nossos Estatutos dizem: «Só o recolhimento durante o trabalho conduzirá o Irmão à contemplação».

- Tanta concentração espiritual não atrapalha a eficácia do trabalho?

- Normalmente não. Em seu espaço de trabalho, o Irmão tem liberdade e iniciativa. E a dedicação e o interesse por seu trabalho costumam transformar os Irmãos Cartuxos em verdadeiros especialistas.

- E a oração “oficial”, a oração litúrgica, como é regulada para eles?

- É como a dos monges do claustro, através da oração das Horas canônicas, ainda que um pouco reduzida.

- Os Irmãos suprem as Horas canônicas com alguma coisa?

- Frequentemente os Irmãos preferem rezar determinado número de Pai-Nossos e Ave-Marias por cada Hora do Ofício Divino. Assim era antigamente.

- Quando eles participam da Missa?

- Podem participar da Missa celebrada pelo Pe. Procurador, bem cedo. E, se preferem, podem assistir à Missa conventual com os Padres.

- Como vocês não tomam café da manhã, o que fazem e onde ficam os Irmãos entre a Missa e a hora do trabalho?

- Em suas celas, dedicados à oração e à leitura espiritual.

- E quando acaba o trabalho?

- Ao meio-dia, antes do almoço, fazem uma visita de quinze minutos ao Santíssimo.

- E à tarde?

- Frequentemente interrompem o trabalho para ir à igreja celebrar as Vésperas com os Padres, mesmo não sendo obrigados.

- A que horas acaba o dia de trabalho?

- Às seis e meia. Antes de jantar, alguns aproveitam para fazer outra visita de quinze minutos ao Santíssimo.

- E depois do jantar?

- Fazem as orações que fecham o dia cartusiano e vão dormir.

- A que horas?

- Até as oito da noite.

- E a que horas se levantam?

- À meia-noite, para celebrar as Matinas com os Padres.

- E voltam a dormir?

- Sim, até as duas da manhã, antes dos Padres, pois não são obrigados a assistir às Laudes, salvo em dias festivos.

- E ao chegar na cela, o Irmão volta a dormir?

- Não imediatamente. Ao chegar na cela, dedica quinze minutos à chamada “oração materna”, que o faz tomar consciência de seu papel de intercessor. Prostrado no chão, expõe lentamente ao Senhor as necessidades da Igreja e do mundo. Ninguém fica excluso das intenções dessa oração: desde o Papa até o último pecador oculto na noite enquanto descansam seus irmãos, os homens.

 

 

4. OS ASPECTOS MAIS CARACTERÍSTICOS DA ESPIRITUALIDADE CARTUSIANA

 

Deus só

- Diferentemente das ordens religiosas de vida apostólica, que se dedicam à pregação, ao ensino, ao cuidado dos enfermos etc., a que se dedica a Ordem Cartuxa?

- Nossa missão na Igreja é o que tradicionalmente se chama de “vida contemplativa”.

- O que é, então, a vida contemplativa para um cartuxo?

- Um mistério que se aproxima do mistério de Deus, de cuja grandeza e incompreensibilidade ela participa de certa forma. Mais além do cuidado pelas coisas do mundo; mais além, inclusive, de todo ideal humano e da própria perfeição, o monge cartuxo busca a Deus. Ele vive só para Deus, dedicado de corpo e alma a louvar a Deus. Este é o segredo da vida puramente contemplativa: viver só para Deus, não desejar mais que a Deus, não querer saber de outra coisa senão de Deus e não possuir mais que a Deus. Aquele que reconhece a Deus como o Bem supremo, compreederá o valor dessa vida de consagração radical que é a vida do cartuxo.

- É um lindo ideal.

- É, mas esse lindo ideal exige um clima adequado para acontecer.

- E qual é o clima adequado?

- As nossas usanças e observâncias criam esse clima e revelam assim o seu sentido. Consideradas isoladamente, sem relação com o seu fim, seriam incompreensíveis e não passariam de um monte de práticas estranhas.

- Vejamos...

 

 


A solidão e o silêncio

- Qual é a palavra que mais se repete na Cartuxa?

- Se alguém se desse ao trabalho de buscar o vocábulo mais repetido nas páginas de nossos Estatutos, seriam certamente as palavras “solidão” e “silêncio”.

- Sua espiritualidade têm algum slogan?

- A espiritualidade cartusiana é a espiritualidade do deserto.

- É uma tradição?

- Assim afirmam nossos Estatutos quando dizem: “Os fundadores de nossa Ordem seguiam uma luz vinda do Oriente, a dos antigos monjes que, consagrados à solidão e à pobreza de espírito, povoaram os desertos numa época em que a lembrança ainda viva do sangue derramado pelo Senhor ainda ardia em seus corações”.

- Essa espiritualidade lhes é própria, ou tem fundamentos em outro lugar?

- A Sagrada Escrutura e a tradição da Igreja oferecem argumentos para colocar a vida solitária acima de qualquer outra vocação.

- Apesar de reconhecer que a solidão é somente um meio, vocês lhe tributam um verdadeiro culto. Por quê?

- Porque, como dizem muito bem os nossos Estatutos, citando Dom Guigo, quarto sucessor de são Bruno no eremitério Chartreuse, a solidão é o meio mais apto para a união com Deus: “o gosto pela salmodia, a aplicação à leitura, o fervor da oração, a profundidade da meditação, a elevação da contemplação e o dom das lágrimas, não podem encontrar ajuda mais poderosa que a solidão”.

- Então essa importância que a Cartuxa dá à solidão tem alguma repercussão na estrutura jurídica da Ordem?

- Toda a legislação da Cartuxa tende a conservar e favorecer essa solidão e esse silêncio, que são os traços mais marcantes da espiritualidade do deserto e da espiritualidade cartusiana.

- Pode me indicar alguns aspectos de seus Estatutos sobre a vida de solidão do cartuxo?

- Os Estatutos proibem ao cartuxo, por exemplo, pregar, confessar e fazer acompanhamento espiritual, coisas em si excelentes, mas que não estão na linha da vocação eremítica.

- Tanta rigidez não poderia assustar a Igreja Católica contemporânea?

- Ao contrário, isto é precisamente o que a Igreja pede hoje ao cartuxo. O Concílio Vaticano II disse claramente que o dever dos contemplativos é “ocupar-se só de Deus na solidão e no silêncio... por mais urgente que seja a necesidade de apostolado ativo” (Perfectae Caritatis, 7). Talvez seja “silêncio” a palavra de que mais necessita o mundo hoje.

- Vocês, os cartuxos, defendem sua vocação contemplativa com a solidão, mas como conseguem se livrar da invasão dos meios de comunicação social?

- Para evitar esse perigo, na Cartuxa não há rádio, nem televisão, e os Estatutos recomendam prudência com as leituras profanas.

- Então vocês vivem alheios ao mundo de hoje?

- Nossos Estatutos nos falam da necessidade de “viver alheios aos barulhos do século”, como algo fundamental para a vida solitária. Mas cabe ao Pe. Prior o cuidado de transmitir aos monges as notícias que não seria bom que ignorassem, para que a comunidade possa apresentar ao Senhor as necessidades de todos os homens.

- Essa observância dura e peremptória não corre o risco de materializar a vida da Cartuxa?

- Toda a nossa legislação sobre o silêncio e a solidão constitue a letra de nossas observâncias. Nelas o monge vê refletido o clima propício para a nossa vocação eremítica, mas sabemos muito bem que isso não é tudo e nem o principal.

- Em uma palavra, o que é necessário para um cartuxo?

- Que se enamore da solidão para vivê-la em intimidade com o Senhor.

- O cartuxo que é fiel a esses princípios é feliz?

- Sim, porque o monge que é fiel à sua vocação comrpreende que Deus o chama a uma solidão e a um silêncio de espírito cada vez mais profundos.

 

O repouso espiritual

- Solidão e silêncio cada vez mais profundos?

- Sim, a solidão exterior cria o ambiente propício, necessário para que se possa desenvolver uma solidão mais perfeita, a solidão interior.

- Em que consiste a solidão interior?

- Em um processo espiritual pelo qual a memória, o entendimento e a vondade vão perdendo o interesse e o gosto pelas coisas passageiras. Por sua vez, Deus começa a ser percebido como o único que pode saciar as profundas aspirações do espírito. Só quando o cartuxo descobre, admirado, que enfim é só Deus que o preenche, começa a ser um autêntico “monge” contemplativo. Esta descoberta produz uma sensação de libertade e gozo interior que é difícil expresar com palavras.

- Esta experiência é algo típico e exclusivo da Cartuxa?

- Se trata de um processo espiritual já descrito na espiritualidade dos antigos monges do deserto, tal como Antão, Pacômio, Evágrio, e em geral nos místicos cristãos de todos os tempos.

- Como vocês, cartuxos, o concretizam?

- Acho que todo esse processo espiritual poderia ser resumido em uma palavra muito cara a nosso pai São Bruno e aos primeiros cartuxos: ”quies”, isto é, o repouso espiritual.

- Se entendo bem, isso significa que todo o ambiente da Cartuxa tende a isso?

- A um clima de solidão e silêncio que elimina o barulho perturbador dos desejos e imagens terrenos. Se trata de uma atenção tranquila e sossegada da mente em Deus, favorecida pela oração e pela leitura pausada. Chega-se assim a essa “quies”, ou “repouso” da alma em Deus. Esse repouso divinizado, simples e gozoso faz com que o monge toque de alguma forma a beleza da vida eterna.

- Que grau de contemplação é esse?

- Digamos que a “quies”, é a meta do cartuxo, é onde anela chegar.

 

Fidelidade à Cruz

- Vocês têm a fama de serem muito penitentes.

- Sobre o tema das penitências da Cartuxa, como sobre tantos outros, existem as ideias mais estranhas. Para nós as penitências são simples “meios para aliviar o peso da carne para poder seguir o Senhor mais prontamente”, como dizem os nossos Estatutos.

- Mas você sabe que hoje em dia a penitência individual não é considerada um meio infalível... Vivemos em um tempo de comprensão e diálogo.

- É, nos dias de hoje, a penitência e, em geral, tudo o que supõe sacrifício e abnegação, é malvisto; costuma-se falar disso com notável inconsciência. Todo o mundo acha razoável que um esportista se prive de muitas coisas boas e submeta o seu corpo a duros treinamentos.

- Vocês, monges cartuxos, desejam viver segundo o “homem novo” da Sagrada Escritura. Pode me dizer precisamente quais são as penitências básicas?

- A separação do mundo, a ausência de notícias e de passatempos... São privações que talvez custem mais aos noviços. Tem também o sono dividido em dois tempos, a simplicidade no vestir, a frugalidade na alimentação...

- O que vocês comem?

- Ao meio-dia almoçamos à base de hortaliças, peixe ou ovos e fruta.

- Quando não fazem jejum, o que jantam?

- Nos dias em que não jejuamos, o jantar consiste em dois ovos, ou o seu equivalente em peixe, e fruta.

- Quando fazem jejum?

- Os jejuns começam no dia 15 de setembro, um dia depois da Exaltação da Cruz, e duram até a Páscoa, isto é, uns sete meses.

- Em que consiste o jejum?

- Em uma só refeição ao meio-dia. À tarde se faz um lanche, geralmente pão e uma bebida.

- Na sexta-feira vocês têm um regime especial?

- Todas as semanas fazemos uma abstinência, em que tomamos apenas pão e água. Geralmente é feita na sexta-feira, em memória da Paixão do Senhor, mas se na semana ocorre alguma festa, essa abstinência é feita nas vésperas da festa.

- Vocês comem carne?

- Tradicionalmente, desde os tempos de São Bruno, jamais se come carne, nem se serve carne a ninguém nas Casas da Ordem.

- Os aspirantes e os noviços também são obrigados a seguir todas essas páticas de jejum?

- A adaptação ao nosso gênero de vida requer tempo e prudência. Por isso, os aspirantes e os noviços se iniciam progressivamente em nossos usos e costumes, sob a vigilância do Pe. Mestre de noviços, que os aconselha.

- E os doentes?

- Os nossos Estatutos dizem: “Se em alguma circunstância ou com o passar do tempo um monge percebesse que alguma de nossas observâncias supera as suas forças e, em vez de impulsioná-lo, o atrapalha na sequela de Cristo, então, com confiança filial, trate do assunto com o seu prior e com ele decida a medida oportuna para si, ao menos temporariamente”.

- É permitido fumar?

- O tabaco é proibido “por motivos de abnegação e pobreza”.

- Resumindo...

- São esses os aspectos mais marcantes da ascese cartusiana. A Ordem os julga suficientes e, com um grande senso de prudência, ordena formalmente que “ninguém se entregue a práticas de penitência fora dos indicados nos Estatutos sem o conhecimento e a aprovação da parte de seu Prior”. A Cartuxa herdou de São Bruno sua moderação e seu equilíbrio. Em sua carta ao amigo Raul, ele descreve com entusiasmo a amenidade das paisagens da Calábria e, se seu amigo se admirara dessas expansões menos espirituais, explica: “a nossa frágil mente, fatigada por uma austera disciplina e pela aplicação às coisas espirituais, muitas vezes com essas coisas encontra alívio e readquire vigor. Na verdade, o arco sempre tenso perde a força e torna-se menos apto para o seu ofício”.

- Para concluir este tema, quais são os principais traços do espírito cartusiano?

- A união com Deus, tender à oração contínua na solidão e no silêncio, a “quies” (repouso contemplativo), a simplicidade de vida, a austeridade: estes são os traços principais do espírito cartusiano, que coincidem com as linhas mestras da espiritualidade do deserto.

 

 

5. AS PECULIARIDADES DA CARTUXA

 

  1. O cartuxo, um eremita integrado em uma família monástica

 

- De tudo o que falamos até agora, posso perceber que o que é mais característico na vida do cartuxo é viver na solidão e no silêncio. Eu li em algum lugar que dentre todas as Ordens monásticas, pelo menos no Ocidente, vocês são a que vive mais a vida eremítica mais puramente.

- É provável. Já lhe disse que o cartuxo é antes de mais nada um eremita que passa quase o dia todo em sua cela ou ermo. Esse é o traço marcante da nossa identidade e o nosso carisma específico.

- Mas esse carisma de solidão da Cartuxa não corre o risco de talvez obscurecer aspectos importantes e evangélicos como o amor e o serviço ao próximo? Acho que foi Santo Agostinho que disse: “Como posso lavar os pés dos meus irmãos se vivo trancado em um ermo?”.

- Essa frase é de São Basílio, pai do monaquismo oriental. Mas não podemos esquecer que, na Igreja, como dizia São Paulo, os membros não têm todos a mesma função. “A vida dos cartuxos é consagrada ao louvor de Deus e à oração de intercessão por todos os homens”.

- E daí?

- Daí que, embora o nosso carisma específico não preveja a assistência dos enfermos, nem a pregação, nem o ensino dos jovens, a Cartuxa não é uma instituição puramente eremítica; a vida solitária é equilibrada por uma parte importante de vida comunitária que também é parte essencial do nosso carisma.

- Ah, é?

- É, e isso desde o começo da Ordem. Apesar da forte atração que São Bruno tinha pelo deserto, é certo que ele não foi um solitário do estilo tradicional, como os eremitas Paulo, Antão e Bento o foram: estes iniciaram a vida monástica vivendo completamente sozinhos no desecto. E São Bruno? Nunca esteve sozinho, pois o acompanhava sempre um grupo de amigos que compartilhavam o seu ideal.

- Esse é um detalhe interessante.

- Para nós é importante viver como eremitas em nossas celas, mas formando ao mesmo tempo uma família unida no interior do mosteiro. No passado se usava o termo “família” para designar as comunidades cartusianas, por causa do número reduzido de seus membros. Hoje os nossos Estatutos fazem o mesmo.

- Como esse aspecto “familiar” é vivido na prática?

- Por exemplo: somos nós mesmo que cuidamos de nossos enfermos e idosos em tudo, acompanhando-os sempre quando necessário, ainda que para isso tenhamos que sair da cela. E o fazemos com carinho, convencidos de que o amor fraterno está sobre qualquer outra consideração e valor espiritual.

- Começo a entender. E percebo até que suas recreações e passeios comunitários têm também algo a ver com isso da vida em família.

- Acertou em cheio. A recreação do domingo e o Passeio semanal dão à vida eremítica da Cartuja um ambiente familiar, humano e evangélico que nos ajuda a conservar um saudável equilíbrio.

 

  1. A cela

 

- Você citou várias vezes a “cela” como se fosse uma coisa especificamente cartusiana. Como é a cela do cartuxo?

- De todas as dependências do mosteiro, as celas do grande claustro são a coisa mais característica da Cartuxa. Basicamente, as celas de todas as cartuxas são compostas dos mesmos elementos, mas a disposição interna pode variar.

- Pode me descrever brevemente as celas?

- As celas são interligadas pelo grande claustro, que é um longo corredor, geralmente em forma de quadrilátero. A palavra “cela”, que os cartuxos usam desde a origem da Ordem para designar seus ermos, evoca espontaneamente a ideia de um único cômodo. Na verdade, a cela do cartuxo é uma pequena casa de um ou dois pavimentos, em cujo espaço há lugar para uma sala de estudos, um oratório, uma pequena oficina de carpintaria e até para uma horta ou jardim. Sua relativa amplitude se explica pelo gênero de vida especialmente eremítico da Ordem: o cartuxo passa a maior parte de sua vida na cela. Nossos Estatutos dizem que a cela é para o cartuxo como a água para o peixe e o aprisco para as ovelhas.

Uma letra do alfabeto talhada em madera e pregada em cada porta distingue umas celas das outras. O primeiro cômodo da cela é um amplo saguão presidido por um crucifixo e uma imagem de Nossa Senhora. A seus pés, de joelhos, o cartuxo reza uma Ave Maria sempre que entra na cela. Por isso, esse cômodo se chama “Ave Maria”. Perto da porta há um armário-mesa com os utensílios necessários para as refeições. Em um canto pode-se ver uma portinha, um guichê numa parede, no qual o Irmão despenseiro deposita a comida que o monge retirará no momento de tomar sua refeição. O cartuxo come em sua cela; somente nos domingos e solenidades almoça com a Comunidade, no refeitório.

Da “Ave Maria” se passa a um cômodo bem iluminado que serve de oficina de carpintaria. Para trabalhar a madeira, dispõe de um torno a pedal, de um banco de carpintaria e das ferramentas mais comuns. Em um extremo da oficina, uma porta nos conduz à horta/jardim, que cada um cultiva segundo os póprios gostos. O cuidado do jardim serve tanto como exercício físico, como uma agradável recreação e distensão espiritual.

Voltando à “Ave Maria”, uma escadaria nos conduz ao cômodo principal, de uns seis metros por cinco. É iluminada por uma grande janela que se abre para o jardim. Eis a mobília: uma mesa e uma cadeira de madeira; uma estante de livros; ao fundo, presidindo a habitação, um pequeno oratório com um reclinatório para as orações; ao lado do oratório, uma humilde cama; e junto à porta de entrada, outra porta que dá para o banheiro. Essa é a cela do cartuxo. Alí ele passa os seus dias, os seus anos, em silêncio, a sós com Deus.

- A cela é um céu ou um purgatório?

- O primeiro, para quem recebeu o dom precioso dessa vocação que é viver só, para Deus. Os monges de todas as épocas experimentaram e cantaram a beleza da vida solitária na cela, onde passam seus dias na intimidade do Senhor. Os nossos Estatutos se unem a essa longa tradição monástica dizendo: “Alí Deus e seu servo se entretêm em frequentes conversas, como fazem os amigos. Alí, a alma fiel se une ao Verbo de Deus, a esposa ao Esposo, a terra ao céu, o humano ao divino”.

- Ok, mas devido ao ambiente cheio de barulho, de imagens e distrações característico da nossa sociedade, não fica difícil para os jovens adaptar-se a uma vida de silêncio e de solidão tão estrita como a que se vive na Cartuxa?

- Normalmente a cela exige para o noviço um processo mais ou menos longo e custoso de adaptação – ou melhor, eu diria de desintoxicação – para fazer silêncio em seu interior, acalmar a fantasia, os afetos, os sentidos, até acalmar o espírito, concentrar-se no essencial, nos valores transcendentes que, em definitiva, são os únicos que podem saciar os desejos mais profundos da alma.

- Que conselhos daria a um jovem que chega do mundo e começa a viver a sua nova vida na cela, uma vida tão diferente da que viveu até então?

- O Pe. Mestre de noviços lhe indicará prudentemente os horários precisos para ocupar seus dias de forma organizada e útil na leitura, na escritura, na salmodia, na oração, na meditação, na contemplação e no trabalho. Ensinar-lhe-á também a lutar contra as tentações de desânimo, a habituar-se pouco a pouco a uma tranquila escuta do coração e a deixar que Deus entre em seu íntimo. Acima de tudo, aconselhar-lhe-á a confiar no Senhor: Ele lhe deu essa vocação de predileção e lhe dará também as graças necessárias para levá-la a bom termo.

 

  1. Os horários da Cartuxa:

 

Matinas e Laudes

 

- Os horários da Cartuxa são um pouco estranhos, não?

- É, são um tanto originais.

- A que horas vocês vão dormir?

- Às 19h30min ou 20h. No verão, a essa hora, o sol ainda está acima do horizonte.

- Deitar para dormir às 19h30min ou 20h! E a que horas se levantam?

- Às 23h30min da noite. A essa hora o sino da igreja chama para a oração.

- Então o dia do cartuxo começa às 23h30min da noite?

- Isso.

- E o que fazem os cartuxos a essa hora?

- Iniciam a sua missão de louvor rezando as Matinas do Ofício da Bem-Aventurada Virgem Maria.

- Já começam bem o dia.

- À meia-noite e quinze o sino toca de novo.

- Pra quê?

- Para que a comunidade se dirija à igreja. Então vão todos caminhando pelos claustros solitários e pouco iluminados.

- E chegados à igreja?

- Colocam-se os livros de coro sobre as estantes, apagam-se as luzes e entra-se em um profundo silêncio. Ao sinal do Prior, inicia-se o canto das Matinas.

- O que são as “Matinas”?

- As Matinas são compostas por duas partes chamadas “noturnos”, com seis salmos cada um. Nos dias festivos há um terceiro noturno de três cânticos. A salmodia é grave, quase lenta. Ao final de cada noturno há leituras da Sagrada Escritura ou dos Padres da Igreja, e a cada leitura segue o canto de um responsório. Nos domingos e em dias de festas importantes, as leituras e seus respectivos responsórios são doze; nos dias de semana há só uma leitura (no verão europeu) ou três (no inverno europeu). O canto Te Deum e a leitura do Evangelho do dia concluem as Matinas de doze leituras; os dias feriais terminam com as preces de intercessão pelas necessidades da Igreja e do mundo. Ao final das Matinas se guardam alguns minutos oração silenciosa e então inicia-se o Ofício das Laudes. Depois, em suas celas, os Padres rezam as Laudes do Ofício da Bem-Aventurada Virgem Maria e se deitam sem demora.

- A que horas?

- Isso depende da duração os Ofícios. Frequentemente às 3h da manhã.

- E por que tudo isso?

- Porque o cartuxo tem uma predileção por essas horas de louvor noturno, quando o silêncio da noite convida a uma oração mais fervorosa.

 

A manhã

- E a que horas vocês acordam de novo?

- Às 6h45min. Os Irmãos que não participam das Laudes se levantam uma hora antes. Às 7h os Padres rezam a Hora Prima, seguida de um momento de meditação.

- E a Missa?

- Às 8h nos reunimos na igreja para a celebração da Missa conventual. Essa Missa é sempre cantada, e dura aproximadamente uma hora. Nos domingos e nas solenidades, a Hora Terça precede a Missa, que nos dias festivos costuma ser concelebrada.

- E quando acaba a Missa conventual?

- Os Irmãos, em suas celas, fazem quinze minutos de ação de graças pela Missa, e depois trabalham até a Hora Sexta. Os Padres costumam celebrar a Missa recitada em umas capelas destinadas a esse fim. De volta à cela, rezam Terça e reservam boa parte do tempo à leitura espiritual.

- Mas vocês não tomam café da manhã? O que fazem até a hora do almoço?

- Os monges em formação estudam e se exercitam em algum trabalho manual: carpintaria, encadernação, pintura, cuidado do pequeno jardim/horta de sua cela...

- A que horas almoçam?

- Às 11h30min ou ao meio-dia, depois de rezar a Hora Sexta. Almoça-se solitariamente na cela, exceto nos domingos e nas solenidades. Normalmente o almoço é depois da oração do Angelus.

- E depois do almoço?

- Até às 13h, o cartuxo costuma se distrair um pouco no jardim, fazendo algum trabalho, caminhando...

- E depois disso?

- Os monges rezam a Hora Nona e o tempo até às Vésperas é dedicado ao trabalho manual, à leitura, ao estudo e à oração. Os Irmãos voltam a seus trabalhos em suas respectivas “obediências” ou oficinas da cartuxa: a cozinha, a alfaiataria, a despensa, o campo, a marcenaria, obras...

- Esses horários não mudam nunca?

- Nos domingos e solenidades a Hora Nona é cantada na igreja e logo após os monges se reúnem na sala capitular, onde escutam uma leitura do Evangelho ou dos Estatutos. De lá vão à horta, ou, se o tempo não o permite, ao claustro, onde têm um encontro fraterno.

 

A tarde

- Como vocês passam a tarde?

- Todos os dias às 16h se cantam as Vésperas na Igreja. O Ofício das Vésperas dura meia hora e é composto por um hino, quatro salmos com suas respectivas antífonas, uma leitura breve, um responsório, o Magnificat, e termina com as preces de intercessão e o canto da Salve Regina, cujos texto e melodia são ligeiramente diferentes dos do rito romano. Depois das Vésperas o tempo é consagrado aos exercícios espirituais.

- A que horas vocês jantam?

- O jantar, ou, nos dias de jejum, o “lanche”, é geralmente às 17h45min.

- E o que fazem depois do jantar?

- Nesse momento sobra um tempo livre para a distensão, seja no jardim, seja pela cela.

- Quando e como acaba o dia do cartuxo?

- Às 19h o sino toca o Angelus da tarde. Os monges podem prolongar a oração ou a leitura espiritual ainda por uma hora, mas é aconselhável não demorar para deitar-se. O dia acaba com a oração de “Completas”, Hora do Ofício na qual se agradece a Deus por todas as graças recebidas durante o dia e se lhe suplica proteção para a noite que está chegando. Assim termina, entre as 19h30min e as 20h, o dia do monge cartuxo.


 

Horários em função da vida litúrgica.

- Suponho que os seus horários sejam estabelecidos em função da vida litúrgica. Certo?

- Isso mesmo. As Matinas no coração da noite, a Missa conventual de manhã cedo e as Vésperas à tarde são os momentos fortes do dia, nos quais os monges deixam as suas celas para ir à igreja.

- Que lugar ocupa a liturgia na vida do cartuxo?

- A nossa vocação é ser com o Cristo e no Cristo um louvor a Deus Pai, através do nosso ministério de louvor e de intercessão. A Eucaristia, celebrada e cantada em melodias gregorianas a cada manhã em comunidade, é, segundo os nossos Estatutos, “o centro e o cume da nossa vida”.

- E o Ofício Divino?

- O cartuxo reza boa parte do Ofício divino sozinho na cela, mas sabe bem que a sua voz não é uma voz individual, isolada, perdida na imensidão do mundo, mas que é a mesma oração de Cristo e de toda a Igreja. Na liturgia, o Cristo, na qualidade de nossa Cabeça, reza em nós, de modo que nele nós podemos reconhecer a nossa voz, e em nós a sua.

 

 

6. As origens da Ordem Cartuxa

 

- Antes de terminar, faço-lhe uma pergunta elementar: o que é a Cartuxa?

- É uma Ordem monástica nascida no final do século XI, um caminho evangélico que percorreu mais de nove séculos.

- Quem é o fundador?

- Mais que um “fundador”, eu diria o “iniciador” deste gênero de vida foi São Bruno, nascido em Colônia, Alemanha, por volta do ano 1030. Foi estudante, depois cônego e reitor da famosa escola catedralícia de Reims, França. Com seis companheiros, retirou-se em um lugar solitário e escondido nos Alpes do Delfinado, o maciço de Chartreuse (Cartuxa), a uns trinta quilômetros de Grenoble. A casa geral da Ordem se encontra ainda hoje naquele lugar.

- Porque vocês dizem que São Bruno não foi o fundador da Ordem, mas o seu iniciador?

- Porque, na verdade, ele não escreveu nenhuma regra monástica, nem sequer permaneceu por muito tempo no eremitério de Chartreuse. Solicitado pelo Papa Urbano II, que havia sido seu discípulo em Reims, teve de ir a Roma e acompanhar o Papa em seus deslocamentos pela Itália meridional. Urbano II compreendeu o carisma de São Bruno, que era profundamente atraído pela vida eremítica, e autorizou que se retirasse novamente em um lugar solitário da Calábria, em Santa Maria da Torre. Lá fundou com outros companheiros um eremitério similar ao de Chartreuse. Alí morreu em 1101, e alí repousam seus restos mortais. Mas foi a primeira fundação da Cartuxa, nos Alpes franceses, que conservou o seu espírito e, com o passar dos anos, se converteu na Ordem monástica dos Cartuxos.


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